E se você cuidasse do “lixo” de todos os seus vizinhos?

Não gostamos de mexer no nosso lixo, pois ele escancara quem somos. Ele mostra o nosso consumo, tudo o que compramos, comemos, bebemos e usamos. Acima de tudo ele mostra o nosso resto e o nosso descuido. Olhar para isso pode ser uma grande viagem de autoconhecimento e foi assim que a Raphaela Prado, a nossa Rapha, fez para ressignificar o seu trabalho aqui em Piracanga. Confira o relato dela e conheça o mundo invisível que está dentro do seu cesto de lixo.

“Cinco anos na faculdade de Psicologia tentando destrinchar o funcionamento do ser humano para estar a serviço da cura. Mal sabia eu que onde realmente encontraria o que buscava seria separando o lixo alheio. O trabalho com a Gestão dos Resíduos Sólidos de Piracanga na teoria é simples: receber os resíduos recicláveis e reutilizáveis duas vezes por semana e uma vez por semana receber os não recicláveis e o papel higiênico. Depois disso direcioná-los para reutilização, reciclagem, compostagem ou (infelizmente) para o lixão mais próximo de nós.

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Rapha e o Tam, em um dos dias em que recebem os resíduos recicláveis dos moradores de Piracanga.

Esse movimento expandiu minha consciência sobre os ciclos e impactos de nossas escolhas, e sobre o que de fato é responsabilidade. Descobri que toda essa história de lixo é uma grande ilusão: ele não existe. É um conceito criado para justificar aquilo que ainda não sabemos como lidar. Um mar de energia dispersa acumulada. Receber os resíduos de toda a Ecovila de Piracanga me lançou num mar de julgamentos e acusações sobre nossos hábitos de consumo. A aceitação foi a chave pra fazer esse trabalho com amor. Aceitar o lugar onde estou enquanto ser humano e o lugar onde estamos enquanto humanidade.

O trabalho com os resíduos é uma ferramenta valiosa neste processo de transição em que vivemos: é uma reprogramação de hábitos e de informações do sistema planetário como um todo. Estou acima de tudo a serviço desse processo, auxiliando no que é necessário: na clareza sobre a separação, dúvidas sobre o destino dos materiais, questionamentos… Escuta ativa e paciência, dos meus limites e dos limites de cada um nessa construção de uma nova prática.

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Receber cada morador com orientações e ideias sobre o que fazer com os resíduos.

O “lixo” é uma porta de entrada para muito mais do que sacolas e garrafas plásticas: é um portal de encontro com o divino, com o todo, onde temos a oportunidade de mudar nosso vínculo de dar e receber com a grande fonte de vida que nos nutre. Nesse portal é possível aventurar-se com o mundo das sombras e rejeições, o que nos leva a uma mudança de perspectiva. Com isso nos abrimos a um universo de possibilidades e recursos antes não revelados para muitos de nós. A reutilização e reciclagem dos materiais me possibilita ressignificar formas e crenças, dentro e fora de mim. Transformar problemas em soluções, ativar a força que habita em todos nós: o nosso poder criativo e de transmutação, os quais podemos identificar nos ciclos da natureza tão facilmente.

Tomar consciência de todo o processo, desde a produção do plástico até os efeitos de sua decomposição num lixão, leva a repensar a rede de sistemas nocivos que ainda sustentamos com nossas escolhas automáticas e a possibilidade real, que já acontece hoje, de romper e criar novas práticas e sistemas a favor da vida. Hoje vejo que essa prática é um presente na minha vida. Sinto uma gratidão sem fim no meu coração que compensa cada dia cansativo. Manejar de forma consciente e amorosa os resíduos humanos é uma prática de saúde pessoal e coletiva!

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Espaço de armazenagem de ecotijolos de garrafa PET e resíduos reutilizáveis.

Fica o convite: olhar para todo o ciclo dos produtos que você consome hoje – o caminho que eles fazem para chegar até você e para onde vão. Você tem autonomia para decidir de onde eles vêm e aonde eles vão. Priorizar alimentos locais e buscar pontos de entrega de recicláveis e coleta seletiva do bairro são um excelente começo. Quem sabe aventurar-se e criar algo lindo com o que até então era visto como lixo? E sempre tenha uma sacola de pano e uma caneca própria na bolsa: um basta às sacolinhas e copos descartáveis!

Repensar nossas escolhas, recusar o que não é necessário, reduzir o que é necessário, reutilizar o que for possível, reciclar o que não for… e rezar pra que o amor e Deus desperte em todos nós.”

Raphaela Prado é membro da Tribo Inkiri, trabalha na Escola da Natureza de Piracanga e na Escola Inkiri.
Raphaela Prado é membro da Tribo Inkiri, trabalha na Escola da Natureza de Piracanga e na Escola Inkiri.

 

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