Texto de Carlos Amaral, guardião do Espaço Cultural das Rosas de Piracanga
“Música e espiritualidade caminham juntos na minha vida desde que eu era criança. De família católica praticante, tive contato com a espiritualidade através dos ensaios dos cânticos litúrgicos que eram feitos lá em casa antes da missa de domingo. A mesma casa que, como bons nordestinos, também celebrava aniversários e encontros familiares com muita dança e música popular. Assim, a Música me permitia viajar internamente da alegria mundana para o louvor ao divino sem criar barreiras entre essas polaridades.
Quando adulto, por volta dos 18 anos de idade, escolhi a profissão de músico para atuar social e profissionalmente. Escolhi ser músico de profissão porque percebi meu desejo imenso de fazer música o máximo de tempo possível e, já que era assim, porque não ganhar dinheiro com isso? Escolhi a música como ação social porque sabia o poder que a Música tinha de “tocar” as pessoas para o que há de mais elevado e também para o que há de mais degradante.
Bem, agora que já está tudo devidamente introduzido, vamos falar de Música. Para isso peço ao leitor que, por favor, interrompa a leitura, feche os olhos e silencie. Peço que depois de um pouco de silêncio tome consciência da “paisagem sonora” na qual está inserido, sem julgamentos ou qualificações mentais. Apenas escute. À medida que o leitor for contemplando a sonoridade ao seu redor deve também perceber o que acontece internamente. Perceba o movimento interno, o “lugar” para onde o som o leva (dois minutos é um bom tempo).
A cultura da escuta dos sons ao nosso redor é uma das muitas formas de conexão com o universo que perderam espaço no mundo ocidental moderno. Assim como as cores de um por do sol, as formas de um cristal ou a poética de um jardim, também há um universo sonoro a ser contemplado na natureza que nos escapa por pura inconsciência. Foi através dessa conexão que a humanidade manifestou a Música.
Sim, somente os seres humanos fazem Música; os animais emitem sons. A diferença primordial entre um e outro é a conexão consciente consigo mesmo. Ao invés de apenas escutar os sons do Universo, o homem passou a formar um dueto com ele, interferindo na paisagem sonora com um objetivo de se conhecer, de verificar lugares que ele ainda não conhecia dentro de si mesmo, expandindo sua consciência sobre a existência e sobre si mesmo.
Os instrumentos musicais são objetos mágicos; são chaves para ultrapassar profundos portais internos e iluminar o desconhecido. Ao mesmo tempo que nos conduzem para dentro, eles criam conexões com diferentes energias externas mostrando ao “músico” diferentes campos de interação da vida.
Quando se toca um instrumento acontece um movimento interno e, simultaneamente, a paisagem externa se transforma. Podemos comparar esse fenômeno com o que acontece quando alguém usa uma planta de poder ou um alucinógeno. Isso mesmo, fazer música é realmente o maior “barato”! O poder de se “alucinar” é diretamente proporcional à consciência destes dois movimentos. Pasmem! Há quem toque um instrumento e nem se dê conta de que isso acontece. Eu mesmo fui um deles por muitos anos.
Hoje costumo dizer que a espiritualidade não se limita aos momentos de culto, meditação ou oração. A espiritualidade é a própria vida. Todo momento é um momento espiritual, já que somos seres espirituais encarnados.
Assim, podemos dizer que a vida é uma “experiência espiritual” e que a Música consiste em uma das muitas formas de se aprofundar nessa experiência. É um “tao”, um “dô” ou, para quem preferir, um “caminho possível” de atravessar essa experiência.
Quando fazemos uso da Música em nossas vidas, seja no carro, durante a faxina, como clima para uma relação sexual ou para o que for, criamos a possibilidade de uma “expansão da consciência”. Podemos acessar informações incríveis presentes dentro de nós e realizar as ações cotidianas de forma completamente diferente. O trabalho mais pesado pode ser tornar muito mais leve, o tempo parece não ter a mesma medida e muitos insights existenciais podem chegar a qualquer momento. Podemos até expressar nossas sombras e colocar pra fora tudo o que socialmente não é possível realizando uma “limpeza” emocional e energética. Para os freudianos podemos dizer que a Música possibilita a sublimação.
Essa é a força dos cantos de trabalho dos negros americanos, a função social dos bailes funk, dos gritos de torcida, das músicas de dor de cotovelo, da poética dos trovadores, do poder de transformação das canções políticas etc. Em regimes totalitários, muitos músicos e artistas são exilados de seus países por expressarem opinião contrária ao regime em questão. Os líderes conhecem bem o poder da Música. A Música ocupa um lugar central nos ritos religiosos de qualquer cultura. Não há religiosidade sem Música.
A nossa consciência pode nos levar a escolher a trilha sonora de nossas vidas e pode despertar em nós um verdadeiro desejo de evoluir, de sair da zona da conforto para dar um passo além. Se você não ousar ser melhor do que é, nunca saberá exatamente quem você é! (Essa frase eu li no livro “O Eu Sem Defesas” de Susan Thesenga, como parte do trabalho de autoconhecimento conduzido pelo meu guru, Sri Prem Baba)
Como base nessa observação, desenvolvi aqui em Piracanga a Meditação Sonora que consiste em uma prática de silêncio de sons e pensamentos que, por sua vez, são “quebrados” por música no intuito de aproximar as pessoas de suas próprias essências. “Só” com silêncio e música. A semelhança é tão grande que muitas curas acontecem, muitos insights chegam e acontece um alinhamento e uma harmonização dos seres humanos com a Natureza, com o Universo. Muitas vezes compartilhamos nossas descobertas com o planeta inteiro.
Deste lugar posso ver nitidamente que somos seres ilimitados mas que, por ignorância e inconsciência, insistimos em viver limitadamente, presos à lógica e à razão. Sem ter que me basear em autores acadêmicos ou qualquer coisa do tipo, digo a vocês que milagres acontecem a todo momento e que podemos escolher enxergá-los e fortalecê-los conscientemente, dançando e aprendendo com este lindo concerto de Amor que é a existência.
Om! Namastê!”
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